Modelos tridimensionais: Úteis para a compreensão da Microbiologia?





Modelo tridimensional da partícula do rotavírus, principal agente etiológico viral causador da diarréia infantil em crianças na faixa de 6 meses a 5 anos de idade. os rotavírus são responsáveis por mais de 200 mil óbitos de crianças nessa faixa etária em todo o mundo anualmente. Fonte do modelo: arquivo pessoal do Prof. Marcelo Moreno (57º aniversário – 27/06/2022). O modelo em arquivo .stl foi obtido de <https://www.thingiverse.com>, acesso 16  jun 2022. 








Imagens do modelos. Fonte: Google imagens & https://grigoriefflab.umassmed.edu/rotavirus_triple_layered_particle.




1ª  parte – Morfologia da partícula viral

Desenvolvemos os modelos 3D há alguns anos. No início recorríamos aos slides na apresentação dos modelos tridimensionais para explicar através de um "desenho palpável" fenômenos e estruturas de partículas virais e bacterianas. Já até postamos em 2010, com atualização em outubro de 2019, postagem sobre a simetria icosaédrica encontrada em alguns vírus, utilizando modelos tridimensionais .


No exemplo abaixo, através da estrutura 3D, observamos com bastante detalhes a morfologia da partícula do SARS-CoV-2 (Figura 1). As cores escolhidas foram  baseadas no modelo divulgado pelo CDC.GOV em abril de 2020 (Figura 2). 


Através do modelo tridimensional, podemos propor uma explicação  para a resistência incomum desses vírus da família Coronaviridae, que apesar de serem envelopados, são bastante resistentes às condições ambientais. Talvez, suas "enormes" espículas glicoprotéicas S, através de forcas de repulsão e atração, e bem numerosas no envelope viral, estabilizem termodinamicamente este vírus envelopado, conferindo uma rigidez e resistência a esse frágil envelope viral.


Figura 1. Observe as espículas proteicas do envelope: S, spike, em vermelho;   M, membrane, amarelo ; e E, envelope, laranja. O modelo em arquivo stl foi obtido de <https://www.thingiverse.com>, acesso 13  jun 2022. E posteriormente processado no programa CHITUBOX®.





Figura 2. Imagem icônica da representação esquemática tridimensional da partícula do SARS-CoV-2 pelo CDC/Atlanta/USA. Fonte: https://phil.cdc.gov/Details.aspx?pid=2871. Acesso 23 jun 2022. CDC/Atlanta/USA = Centro de Prevenção e Controle de Doenças norte americano, localizando em Atlanta, no Estado da Geórgia, Estados Unidos da América.


A posição eqüidistante das espiculas glicoproteicas S, através das forças de atração e repulsão, devido as cargas eletrostáticas dos aminoácidos e carbohidratos que compõem a proteína S, contribuem para tal, ao mesmo tempo mantendo a fluída e sensível bicamada lipídica do envelope viral num estado de tensão superficial, conferindo uma "rigidez", ou seja, uma resistência maior ao ambiente e superfícies.

Provavelmente, o tipo de superfície, de acordo com as cargas eletrostáticas, irá interferir com essa organização, termodinâmicamente mais estável, explicando as diferentes resistências nas diferentes superfícies.





Figura 3. As espículas glicoproteicas virais ou peplômeros (do grego plepos = envelope, toga) são codificadas pelo genoma viral, e durante a replicação da partícula viral pela célula infectada, essas glicoproteínas ficam inseridas nas membranas das estruturas celulares (retículo endoplasmático, membrana plasmática). Observe que a proteína S é a espícula de maior tamanho, sobressaindo sobre as outras espículas glicoproteicas virais. microscopia eletrônica dos vírions do SARS-CoV-2 revela partículas virais esféricas ou elipsoidais, com diâmetro na faixa de 60 a 140 nm (nanômetros). A proteína de membrana (M), dispostas aos pares, é uma pequena proteína do envelope viral, parte dela está embutida na membrana e metade está dentro do vírus. A proteína do envelope (E) é uma molécula de simetria quíntupla, a qual forma um poro no envelope viral. 


O tamanho médio da espícula glicoproteica S é de 23 nm ( Liu e colaboradores, 2020; Ke e colaboradores, 2020). Ke e colaboradores, encontraram uma relação entre o números de proteicas S no envelope e o diâmetro da partícula. A Figura 4  mostra partículas virais liberadas de um tapete de células infectadas com SARS-CoV-2. (A) exibe o histograma de distribuição dos diâmetros dos virions. A média e o desvio padrão para os diâmetros são 104 ± 13 nm (n = 67). Em (B) é mostrado o gráfico de dispersão do número de espículas identificadas por vírion em relação ao diâmetro da partícula viral.

Talvez, haja uma correlação entre estes números e a persistência da partícula nas condições  ambientais. Ou seja, um determinado número de espículas S esparramadas no envelope viral conduz a uma maior resistência da partícula viral.








Figura 4. Observe que a partícula do SARS-CoV-2 varia entre 80 a 140 nm. Na faixa de 90 a 120nm, verifica-se um faixa ampla de números de espículas, de 2 até 45, enquanto as partículas acima de 130nm temos a distribuição em três valores, 7, 22 e 39 espículas S. Talvez as partículas mais liberadas, no intervalo entre 90 e 120 nm, possam ser as mais estáveis termodinamicamente. Precisamente na faixa 15-30 espículas S/ 90 a 110nm de diâmetro do víron. Observa-se também que não é favorecido em quantidade de partículas liberadas quando se possui muitas espículas, acima de 40 por vírions, ou possui tamanho maior do que 130nm. Esta distruibuição pode corroborar com a idéia de que a quantidade de proteína S determina a maior ou menor resistência da partícula viral. No entanto, necessita-se de mais dados para afirmar. Fonte da imagem e informação: Ke e colaboradores, 2020.


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2ª  parte – Quimioterápicos: antibióticos  β-lactâmicos


As penicilinas compreendem um grupo de algumas dezenas de antimicrobianos (droga que possui toxicidade seletiva, ou seja, causa um dano maior ao micróbio do que à célula do hospedeiro).

Esse grupo é caracterizado pela presença do grupamento químico denominado anel β-lactâmico, Figura 1. Possuem ação bactericida durante a fase de crescimento exponencial (fase Log), porque inibem a síntese da mureína (peptideoglicana da parede celular bacteriana). A presença do anel β-lactâmico determina o mecanismo de ação dessas drogas. 




                       
Figura 1. Núcleo do anel β-lactâmico. Fonte: Google imagens.



Com efeito o mecanismo de resistência por parte das bactérias, está baseado na ação das β-lactamases (ou penicilinases) que clivam o tenso anel β-lactâmico. De tal forma, que a droga perde o seu efeito de inibir a síntese da parede celular bacteriana.

Os livros didáticos tão somente apresentam as estruturas, relatando se uma determinado tipo de penicilina é resistente ou não às β-lactamases em função da cadeia lateral (Figura 2). O que certamente não deixa claro aos iniciantes do assunto o porquê uma determinada estrutura é ou não resistente a essas enzimas. No caso, a penicilina G da Figura 3, é sensível às β-lactamases, enquanto a oxacilina da Figura 4 é resistente.



Figura 2. Representação da fórmula estrutural plana do grupo dos antimicrobianos penicilinas. Observe a cadeira lateral R. É esta parte da molécula, a cadeia lateral, diferente nos vários tipos de penicilinas, que acarreta as diferentes propriedade farmacológicas e as diferenças na resistência às pecinilinases. B é o anel β-lactâmico. As penicilinases ou  β-lactamases clivam a ligação amida, a ligação covalente entre o C da carbonila e o N, inativando o antibiótico (veja seta vermelha). Fonte: Google imagens.







Figura 3. Fórmula plana estrutural da Penicilina G, sensível às β-lactamases. Fonte: Google imagens.





Figura 4. Fórmula plana estrutural do sal mono-hidratado de oxalicina sódica. Esta penicilina, a oxacilina, é resistente à  β-lactamase. Fonte: Google imagens.




Todavia, chegamos a um ponto interessante e ao mesmo tempo esclarecedor. É impossível através das fórmulas planas estruturais compreender a resistência ou a sensibilidade desses antimicrobianos às penicilinases. No entanto, as estruturas tridimensionais, os modelos 3D, explicam, e o fazem com relativa facilidade. Sendo fundamentais para a compreensão.



Vejamos primeiro a penicilina G, a penicilina sensível à β-lactamase: 


A
B
Figura 5. Vista traseira do modelo tridimensional da penicilina G, tomando como base a Figura 3. Em (A), modelo tridimensional da penicilina G. Em (B) observe o destaque do anel β-lactâmico circulado em vermelho.





(A)
(B)
Figura 6. Vista por cima do modelo tridimensional da penicilina G, tomando como base a Figura 3. Em (A), modelo tridimensional da penicilina G. Em (B) observe o destaque do anel β-lactâmico circulado em vermelho.






(A)
(B)
Figura 7. Vista de frente do modelo tridimensional da penicilina G, tomando como base a Figura 3. Em (A), modelo tridimensional da penicilina G. Em (B) observe o destaque do anel β-lactâmico circulado em vermelho.






Agora, a Oxacilina: a penicilina resistente à β-lactamase. 


(A)



(B)


Figura 8. Vista de frente do modelo tridimensional da oxacilina, tomando como base a Figura 4. Na Figura 8A, o modelo tridimensional. Observe a cadeira lateral R (destacada em vermelho) posicionada acima do anel β-lactâmico B (em vermelho). Abaixo, na Figura 8B, observe o destaque do anel β-lactâmico B em vermelho. Note que  a cadeia lateral está muito próximo ao anel β-lactâmico, como se estivesse "blindando" o anel, impedindo especialmente o acesso à β-lactamase. O anel de núcleo benzênico A, num posição acima do anel B, lembra a cobertura de um guarda-chuva. Poderíamos sugerir este modelo como o nome de "efeito guarda-chuva" para a proteção do anel β-lactâmico das penicilinas. Um espécie de escudo, no caso, criado especificamente pelo anel benzênico A da cadeia lateral R, impedindo, assim, o acesso das penicilinases.







(A)



(B)



(C)



Figura 9. Figuras A, B e C, vistas de cima do modelo tridimensional da oxacilina, tomando como base a Figura 4.  Observe em C, o anel o β-lactâmico "escondido" pelo anel benzênico. R = cadeia lateral; A = núcleo benzênico; e B = anel β-lactâmico. Fonte para a construção do modelo= <https://flexikon.doccheck.com/de/Oxacillin>. Acesso 21 jun 2022.





CONCLUSÃO


Valiosas informações são melhores compreendidas através dessas estruturas 3D. Percebe-se ainda que de posse destas ferramentas, existe a possibilidade de criarmos modelos que expliquem, no caso do SARS-CoV-2, a resistência incomum desses vírus envelopados.

As imagens dos modelos tridimensionais da penicilina G e oxacilina  evidenciam que o anel  β-lactâmico no primeiro caso não possui grupamentos atômicos próximos, ou seja,  a cadeia lateral não fica em frente ao anel β-lactâmico ( parte traseira de acordo com as imagens do  modelo 3D). No caso da oxacilina, podemos observar somente através desta construção espacial, que o anel β-lactâmico está sendo "bloqueado" por grupamentos atômicos (a cadeia lateral, exibida na Figura 4).

A compreensão é de que para que a penicilina seja inativada pela enzima bacteriana;  a  β-lactamase deve ter acesso ao anel pela parte traseira (conforme convenção adotada na apresentação dos modelos tridimensionais). A penicilina G tem uma cadeia lateral que não fica situada atrás do anel β-lactâmico, ao passo que a oxacilina tem uma cadeia lateral que impede espacialmente o acesso das penicilinases ao anel β-lactâmico, tornado-a resistente a estas enzimas.

Não há como desvalorizar esse recurso para o ensino e a aprendizagem – a construção das peças tridimensionais. Por sua vez, as imagens  2D não permitem ao discente uma imersão mais profunda  e detalhada, no que concerne as disposições espaciais, bem como a compreensão dos fenômenos que essas partículas virais ou moléculas estão envolvidas.





REFERENCIAS



How I Built a 3-D Model of the Coronavirus for Scientific American. Veronica Falconieri. In <https://www.scientificamerican.com/article/how-i-built-a-3-d-model-of-the-coronavirus-for-scientific-american/>. Access 25 Jun, 2022. Scientific American. 2020.


Viral Architecture of SARS-CoV-2 with Post-Fusion Spike Revealed by Cryo-EM. Chuang Liu, Yang Yang, Yuanzhu Gao, Chenguang Shen, Bin Ju, Congcong Liu, Xian Tang, Jinli Wei, Xiaomin Ma, Weilong Liu, Shuman Xu, Yingxia Liu, Jing Yuan, Jing Wu, Zheng Liu, Zheng Zhang, Peiyi Wang, Lei Liu. bioRxiv preprint DOI: https://doi.org/10.1101/2020.03.02.972927. Mar 02, 2020.

Structures, conformations and distributions of SARS-CoV-2 spike protein trimers on intact virions. Zunlong Ke, Joaquin Oton, Kun Qu, Mirko Cortese, Vojtech Zila, Lesley McKeane, Takanori Nakan, Jasenko Zivanov, Christopher J. Neufeldt, John M. Lu, Julia Peukes, Xiaoli Xiong, Hans-Georg Kräusslich, Sjors H.W. Scheres, Ralf Bartenschlager, John A.G. Briggs. bioRxiv preprint. DOIhttps://doi.org/10.1101/2020.06.27.174979June 27, 2020




Comentários

Imagem esquemática do SARS-CoV-2 exibindo a espícula glicoproteica S

Imagem esquemática do SARS-CoV-2 exibindo a  espícula glicoproteica S
Ela é responsável pelo fenômeno de adsorção, a ligação do vírus à célula, e portanto, pelo início da infecção viral. O SARS-CoV-2 se liga às células através de um receptor, a enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), presente nas superfícies de células do pulmão, do intestino, do rim, e de vasos sanguíneos. Imagem: https://www.scientificanimations.com/C&EN/Shutterstock.

Imagem esquemática do SARS-CoV-2.

Imagem esquemática do SARS-CoV-2.
Observe receptor presente na célula [ACE2] que se liga à proteína S. Human cell = célula humana; Glycoprotein = glicoproteína. Imagem: https://www.scientificanimations.com/C&EN/Shutterstock.

SARS-CoV-2 iniciando o processo de infecção.

SARS-CoV-2 iniciando o processo de infecção.
Fenômeno de adsorção - quando o vírus "toca" a célula com "segundas intenções". A menor quantidade de receptores ACE-2 nas células das crianças explicaria o fato desta faixa etária ser menor atingida por este novo coronavírus.